terça-feira, agosto 21, 2012

Previsão do Tempo - Dias com rajadas de saudades

Este é o texto que li na missa em memória de meu pai:


Previsão do tempo
De Daniel Estill para Denis Edward Estill

Hoje de manhã, fui fazer observações meteorológicas no Aterro do Flamengo com Adriana e preparei um boletim de previsão do tempo que leio agora, em primeira mão, para todos vocês.
A primeira previsão que fiz foi que o tempo, nós próximos muitos anos, vai passar.
No período, teremos momentos de grandes instabilidades, mas também de calmarias.
Nós próximos anos, haverá dias de sol, dias de chuva, e dias de sol e chuva.
Teremos muitas noites de cinema e jantar, eventuais peças de teatro, concertos no Municipal, apresentações do coral.
Teremos fases de tristeza profunda, mas elas também, vão passar. Teremos jantares em família, às vezes só um filho ou uma filha com sua mãe, às vezes, todo mundo e uma grande bagunça.
Teremos desentendimentos, novas mágoas, decepções. Teremos novos encontros e algumas possibilidades de reconciliações. Mas isso não depende do tempo, mas do que fazemos com ele.
Teremos, infelizmente, novas doenças e partidas, mas também novas chegadas. Novos filhos e netos. Novos pais querendo educar bem os seus filhos e avôs e avós empenhando-se em estragar o serviço.
Teremos passeios de barco, teremos caminhadas, teremos viagens de avião. Eventualmente, engarrafamentos enormes, que desaguarão em pistas liberadas.
A observação das nuvens sobre o Pão de Açúcar prenuncia visitas de amigos, talvez novas amizades, outras renovadas.
O voo das gaivotas informa que mesmo pessoas distantes pensam e olham por nós, mas seguem seus caminhos em liberdade.
Havia poucas maritacas hoje no Aterro, o que pode sinalizar momentos de silêncio matinal, mas que serão interrompidos pela algaravia do dia a dia, quando despertarem as maritacas.
Observei grandes massas térmicas de pessoas indo e vindo, jogando vôlei, pedalando, correndo e caminhando. Isso prenuncia dias de trabalho, de cansaço, eventuais desânimos, mas também dias de esforço e superação.
O estudo meteorológico de hoje de manhã permite-me afirmar que, nós próximos anos, teremos momentos intensos da vida acontecendo incansavelmente. Os sinais anunciam que o tempo passa e a vida vai com ele.
Sem precisar de sinais explícitos do voo dos pássaros, do movimento das árvores sob o vento, do ir e vir de pessoas e seus cães, sei que todos esses momentos serão acompanhados pela lembrança viva do olhar brilhante e da risada fácil do meu pai, que nos acompanharam até seus últimos dias, a despeito de todo o sofrimento.
Para mim, Deus é silêncio, ausência e constância. Agora, meu pai está com ele, em silêncio, ausente e constante.

Rio de Janeiro, 4 de agosto de 2012.

quinta-feira, maio 10, 2012

Dom Casmurro no teu deserto

Perto do dia das mães, resolvi visitar Bentinho em Mata-cavalos e surpreendi-me com a maneira como o Casmurro evoca a mãe e o pai. Havia esquecido:
"Não me lembra nada dele, a não ser vagamente que era alto e usava cabeleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me acompanham para todos os lados, efeito da pintura que me assombrava em pequeno. O pescoço sai de uma gravata preta de muitas voltas, a cara é toda rapada, salvo um trechozinho pegado às orelhas. O de minha mãe mostra que era linda. Contava então vinte anos, e tinha uma flor entre os dedos. No painel parece oferecer a flor ao marido. O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de sociedade.
"(...)São retratos que valem por originais. O de minha mãe, estendendo a flor ao marido, parece dizer: 'Sou toda sua , meu guapo cavalheiro(!)' O de meu pai, olhando para a gente, faz este comentário: 'Vejam como esta moça me quer...' Se padeceram moléstias, não sei, como não sei se tiveram desgostos: era criança e comecei por não ser nascido. Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira expressão. São como fotografias instantâneas da felicidade."
Obviamente, a exaltação do matrimônio dos pais servirá de contraponto para a amargura do seu próprio, pois nada de bom há de restar de uma leitura de Machado de Assis (afinal de contas, "não tive filhos...").
Ainda assim, dona Glória era feliz e estendia uma flor ao marido, igualmente feliz, naquelas fotografias instantâneas da felicidade.

Mas aí, lembro-me da recente leitura do Miguel Sousa Tavares (no livro citado no post mais abaixo):
"(...)Dizem que as fotografias não mentem, mas essa é a maior mentira que já ouvi.
(...)Nisso, quando guardam para sempre um instante que nunca se repetirá, as fotografias não mentem -- esse instante existiu mesmo. Porém, a mentira consiste em pensar que esse instante é eterno, que dois amantes felizes e abraçados  numa fotografia ficaram para sempre felizes e abraçados. É por isso que não gosto de olhar para fotografias antigas: se alguma coisa elas reflectem, não é a felicidade, mas sim a traição -- quando mais não seja, a traição do tempo, a traição daquele mesmo instante em que ali ficámos aprisionados no tempo. Suspensos e felizes, como se a felicidade se pudesse suspender carregando no botão 'pausa' no filme da vida."
Traição. São tantas as formas de trair. Mais de século separa um livro do outro e aí os tenho, tão parecidos.

quarta-feira, abril 25, 2012

No teu deserto, Miguel Sousa Tavares

"(...) Com os anos, comecei a ficar obcecado em construir coisas. Coisas que durassem, que ficassem depois de mim: filhos, casas, fotografias, livros, reportagens, viagens, histórias que eu pudesse contar e partilhar com os outros. E, de cada vez que concluía uma coisa, passava a outra e assim sucessivamente, como se tentasse ultrapassar o próprio tempo. Tirando o silêncio, a solidão e o espaço, tirando o tempo gasto nisso, todo o resto do tempo que não fosse passado a construir coisas novas parecia-me um desperdício de vida. Consumia-me uma febre insana de caminhar sempre em frente, ao mesmo tempo que tentava preservar, como coisa preciosa, a memória de todos os dias felizes que tinham ficado para trás -- e onde estavam, como as folhas secas de uma rosa deixadas entre as páginas de um livro já lido, os nossos quarenta dias de deserto."
Há algum povo mais triste, mais nostálgico, mais melancólico que os portugueses?

quinta-feira, abril 19, 2012

Homens invisíveis, Leonencio Nossa

"(...) Aliás, obras didáticas consideram que a contribuição do índio se limita ao uso da rede de dormir, à domesticação da mandioca e à preservação de palavras de origem tupi. Suas formas de ver e sentir o mundo, sua relação com o ambiente e seus ritos são ignorados. A maioria dos estudantes acaba vendo o índio de forma simplista, apenas como um ser do passado."
Homens invisíveis, Leonêncio Nossa.

Não, não são do passado. Os conflitos que estão ocorrendo no sul da Bahia são reais e presentes, muito presentes. E não são únicos. Os jornais puxam nossos olhos para lugares distantes, para a geopolítica do Oriente Médio, mas o nosso genocídio local é bem disfarçado, nossas Faixas de Gaza são muitas, mas não as vemos, e não, não são coisa do passado. Infelizmente, a tragédia indígena brasileira chama muito mais atenção dos estrangeiros do que de nós mesmos. Eu nunca tinha ouvido falar de Sydney Possuelo, ignorante eu. Um sujeito que desperta amor ou ódio, mas que incomoda, de uma forma ou de outra. Vim saber dele por causa deste livro: The Unconquered, que estou traduzindo, e depois, por causa deste: Homens invisíveis. Ambos ótimos. Ambos relatos de uma mesma expedição, a diferença, curiosíssima, é que um foi escrito do ponto de vista de um jornalista americano, o outro, de um brasileiro. Muito interessante de comparar.
Há tempos, lia Maíra, do Darcy Ribeiro, os livros de Márcio Souza, uma coletânea de lendas indígenas do Xingu. Já tinha ouvido falar dos irmãos Villas Boas. O assunto sempre me despertou a curiosidade. Mas é isso que os índios despertam entre nós, a curiosidade por algo exótico, que já foi. Não, não, ainda são, apenas, praticamente invisíveis.

quarta-feira, abril 18, 2012

Ismael e Chopin, Miguel Sousa Tavares

"A partir daí, a minha vida mudou. Eu era um coelho que vivia na floresta, como até aí. A minha vida era a de um coelho normal, desde que acordava até que o sol se começava a pôr: eu cuidava da minha toca, procurava comida, brincava com os meus irmãos, ia até o ribeiro beber água, permanecia atento aos perigos e aos meus inimigos. Mas, a partir do final do dia, tinha uma vida que ninguém mais, em toda a floresta, tinha igual. Porque agora eu tinha a música e a música apagava tudo o resto. Como se a própria floresta deixasse de existir, quando o sr. Chopin se sentava ao piano e a sua música saía voando por entre as árvores."
Ismael e Chopin, Miguel Sousa Tavares. Companhia das Letrinhas.

domingo, fevereiro 26, 2012

Humildade, humilus, humus

Escreve Alexander Gideon, personagem de Amós Oz em A caixa-preta, tradução de Nancy Rozenchan, Cia das Letras:
"(...) E o que é humildade? Humildade vem de humilus, que pelo visto provém de humus, "terra". Por acaso há humildade na terra? Aparentemente qualquer um pode fazer o que quiser dela. Cavar, revirar, plantar. Mas no fim ela engole todos os que a dominam. E fica lá, num silêncio eterno."
Uma mãe que devora inexoravelmente todos os seus rebentos. Do pó ao pó.

terça-feira, janeiro 10, 2012

Os reis malditos, Maurice Druon

"Porque, naqueles séculos em que grande número de crianças morriam no berço e a metade das mulheres nos partos, aquela época em que as epidemias devastavam a maturidade, em que os ferimentos não se curavam senão raramente, em que as feridas não se fechavam, em que a Igreja ensinava a pensar sem repouso na morte, em que as imagens dos santuários mostravam vermes roendo cadáveres, e em que cada qual se sentia durante toda a sua vida, como que carregando a própria carcaça, a idéia de morte era habitual, familiar, natural. Ver um homem lançar o último suspiro não seria, como para nós, uma trágica advertência da ordem de nosso destino comum."
in O rei de ferro, Maurice Druon, tradução de Nair Lacerda, Difel. 1. volume de Os reis malditos.

É admirável pensar que Maurice Druon é também o autor de O menino do dedo verde, não?

sexta-feira, dezembro 30, 2011

Perguntaram a um surdo se era preciso ouvir as palavras para ler. Ele não ouviu a pergunta e pediu que a escrevessem num papel. Sob a pergunta, ele escreveu:
- De forma alguma, ler é outro sentido. Além disso, os que ouvem dizem preferir ler em silêncio.
Perguntaram a um cego se era preciso ver para crer:
- De forma alguma, sequer é preciso ver para ler.
Perguntaram a um leitor por que ele lia:
- Leio por que são palavras, fossem desenhos, veria.
Perguntaram a um escritor por que ele escrevia:
- Escrevo porque são letras, fossem apenas traços, desenharia.

quarta-feira, dezembro 28, 2011

Finais

"Tenho 72 anos. Olho para os meus filhos e para meus netos e penso em que diabos de histórias se meterão e o que é que um dia eles poderão contar. Porque um homem é feito de histórias, não é de DNA e músculos e ossos. História."
Os livros que devoraram meu pai, Afonso Cruz, ed. LeYa.

Repare na "História", com H maiúsculo. Afonso Cruz não está chamando de ficção.

"Quando entro no apartamento, ouço o choro de um bebê."
Ainda existem aveleiras, Georges Simenon, tradução de Celina Portocarrero, ed. L&PM

Faltaria aqui, talvez, o final de Brás Cubas, uma das frases preferidas da nossa literatura:
"Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria."
Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis, Nova Aguilar.

Os dois primeiros finais foram de livros que ganhei de Natal e me fizeram lembrar do otimismo ingênuo de Brás Cubas de achar que o legado dele seria o mesmo legado de todos e que sua não descendência hereditária poderia fazer alguma diferença sobre a marcha geral da insensatez humana.

Quanto ao livro de Simenon, foi uma releitura. Parte pelo livro em si, parte para conhecer uma tradução da Celina Portocarrero, recentemente minha professora numa oficina de tradução da Estação das Letras. Gostei da tradução e já gostava do livro, só que pensei que fosse outro. Agora estou com um problema. Achei que o Ainda existem aveleiras fosse outra história, a história de um rapaz judeu que tem questionamentos sobre a própria fé, que recebe a orientação de um rabino (que lhe explica que acreditar ou não é uma escolha semelhante à escolha de um time de futebol pelo qual você queira torcer), que se casa com uma não judia, que se converte ao judaísmo para se casar com ele. Isso é o que eu me lembro do livro, e, pensando bem, não tem nada a ver com Simenon. Coisa que li há mais de 20 anos. Talvez algum livro do Isaac Bashevis Singer, mas também não creio que seja não. E também não faço ideia de porque misturei um livro com o outro. Sei também que esse livro misterioso influenciou a minha escolha por ter fé, ou pelo menos de tentar ter, e por isso quis recuperá-lo e o inclui na minha lista de presentes de amigo oculto. So que, com o título errado, o livro errado. Tenho fé de que o encontrarei, mas, se não for uma questão de fé, que seja de esperança. Esperança de reencontrar um livro cujo título e autor eu esqueci, mas cujo conteúdo nunca me deixou. A memória da gente é uma coisa engraçada. O outro não deixa o legado de sua (nossa, diz ele, presunçoso) miséria para um filho, mas deixa suas memórias escritas para serem lidas e relidas por milhões (?) de pessoas pelos séculos dos séculos amém. (Será que é algum outro livro do Simenon? Mas porque Simenon escreveria sobre os questionamentos religiosos de um rapaz judeu? Não faz muito sentido para mim.)

segunda-feira, outubro 31, 2011

Soco ou mão estendida?

Volta e meia, leio nas resenhas literárias que a prosa de fulano é como um soco na boca do estômago. E isso é um elogio.
Eu me sinto nocauteado há muito tempo por uma certa literatura, um cinema, ou uma certa arte. Não me sinto bem. Não acho que o box literário seja um bom caminho de leitura para mim. Não gosto da angústia, muito menos concordo que seja algo a ser buscado. Não concordo que essa náusea existencial seja a condição final do homem. Não quero isso para mim. Estou cansado.

Existem escritores que não nos espancam, e nem por isso lhes falta vigor. Sinto isso em relação ao Ítalo Calvino, ao Herman Hesse, ao José Saramago. Aos cronópios e famas de Julio Cortázar (mas não em relação ao detestável, egoísta e desorientado Horácio Oliveira, incapaz de amar). Alguns escritores, em vez de nos socarem e tripudiarem de nossa miserável condição, acenam para nós de dentro de uma frágil piroga que chegou  à terceira margem do rio. São textos que não chafurdam na escuridão de mistérios que podem simplesmente não existir. Alguns mistérios tolos, que insistimos em criar. Contra os quais insistimos em nos debater com nossa impotência. Ou que, se existem, existem e ponto. Prefiro a luta para não me deixar arrastar pelo impossível, não para mergulhar e me perder nele. Não nego o Horror, mas não o festejo. O que me deixa cada vez mais nauseado é a violência, sempre tão gratuita, mais e mais.

"A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele ia até aonde ia aquela cantiga."

Existem textos que são como cantigas, que nos acompanham até o fim, que nos levam de volta para casa, de verdade. Não falseiam nossas perdas, não negam a loucura, mas, em vez de socos, nos estendem a mão.

"Profundamente, até o chão, inclinou-se Govinda diante de Sidarta, que se conservava sentado, imóvel, e cujo sorriso chamava à memória do amigo tudo quanto ele amara no curso da sua vida, tudo quanto já se lhe afigurara precioso e sagrado."

Existem textos que nos libertam.

"Quais imprevistas idades de ouro prepara, você, malgovernado, você, precursor de tesouros que custam muito caro, você, meu reino a ser conquistado, futuro..."

E neste ponto, consigo encontrar algum sentido na literatura.

sexta-feira, outubro 07, 2011

Tranströmer, o cágado de Paulo Henriques Britto e o Nobel

Os prêmios Nobel são: Química, Física, Fisiologia ou Medicina, Economia, Literatura e Paz. Não tem Nobel para Música, Artes Plásticas, Filosofia, História, nem para Cinema. Tem para Literatura. E para a Paz. Literatura, "na verdade, uma outra forma de vida", como diz Paulo Henriques Britto, no seu Macau, seu livro de poesia premiado.
E quando o Nobel de Literatura vai para um poeta, traduzido para mais de 30 idiomas (mas não para o Brasil), o "cágado com as quatro patas viradas pro ar", do Paulo Henriques Britto, agita as patinhas mais intensamente. Não sei se para comemorar ou se, ainda tentando se virar, para fugir, se esconder numa cova úmida sob um tronco apodrecido, e continuar lá o seu trabalho silencioso, solitário, e inesquecível.
"Tranströmer", lembra trovoada. Transtorno. Quem vai traduzi-lo para português?


PS: Obrigado pelo link, Denise Bótima!

domingo, setembro 18, 2011

A massagista japonesa - Moacyr Scliar

Adoráveis as crônicas do Moacyr Scliar. A ignorância é uma benção porque nos permite sempre conhecer novas coisas. Nunca tinha lido nada de Moacyr Scliar. De vez em quando compro um livrinho de bolso da L&PM para levar num ônibus ou metrô. Numa dessas, foi essa antologia de crônicas. Espero não estar infringindo nenhuma lei ao copiar uma delas aqui. Uma bem pequena.
Decisão
Um homem vai ao médico para saber o resultado do exame; chocado, ouve o veredicto: aquilo que mais temia aconteceu, o exame revelou câncer. Quanto tempo me resta, pergunta o homem, a voz trêmula. Não muito, responde o médico, penalizado mas decidido a nada ocultar: não adianta varrer a sujeira para baixo do tapete. Não refeito do golpe, o homem sai à rua. O sol brilha, as pessoas caminham apressadas, mas ele já está longe de tudo, sente-se como encerrado numa espessa redoma de vidro na qual não penetram os ruídos nem os odores. Mas o homem não se deixará abater; reagirá, é o que resolve. Já que tem pouco tepo de vida, fará as coisas que sempre teve vontade de fazer. A primeira delas: vai ao escritório onde está empregado como contador e manda o patrão, que o oprimiu durante anos, à merda. Antes que o homem se refaça da surpresa, ele sai, não sem dizer à secretária que ela é muito, muito boa, ao que ela reage admirada, mas não desagradada. Volta para casa, conta à mulher o que aconteceu. Ela chora naturalmente, pergunta o que ele pretende fazer. Nada, ele diz. Pescar. Sempre gostou de pescar, e é o que fará agora: irá para a praia, passará os dias pescando.
Nem chega a arrumar os caniços. O telefone toca: é o médico, aflito mas alegre. Trocaram os exames no laboratório, ele anuncia, você não tem câncer, é uma simples inflamação.
Uma simples inflamação: o homem deixa-se cair na cadeira, perplexo. Que fará agora? Agora que mandou o patrão longe, agora que pretendia passar os dias pescando (se possível, isto ele só pensou, acompanhado da secretária boa)? Que fará agora, pensa, aterrorizado, agora que não tem câncer?
in Moacyr Scliar, A massagista japonesa,  ed. L&PM, pág. 78.

Humor cáustico, às vezes ingênuo, antigo e terno.

quarta-feira, setembro 14, 2011

Desejo que não quer deixar de ser desejo

"Em hebraico, diríamos um 'desejo de Shalom'. O Shalom que normalmente traduzimos por 'paz' significa 'estar inteiro'. Nós não estamos em paz porque não estamos inteiros, daí a razão pela qual nós também chamarmos isso de desejo de 'realização': realizar o Ser, o Self que nós somos. O homem realizado é aquele que alcançou o Tudo no qual ele pode, enfim, conhecer a plenitude e o apaziguamento.
"Para alguns, o Ser, o Self, é o fim do desejo. O que mais poderíamos desejar além do "tudo"? Para outros, uma experiência de plenitude, de inteireza, em que há lugar para o outro14, é possível. Ela dá lugar a um outro desejo, desejo do Outro, que não é apenas desejo de ser desejado, mas desejo do Outro que é querido por si mesmo na sua alteridade e não como um Ser que preenche meu desejo; pelo contrário, como Ser que aviva o meu desejo, água viva que jamais sacia completamente a minha sede..." (sublinhado meu)

E a nota da tradutora:
14 No original francês: "Pour d'autres, une expérience de plénitude, d'entièreté, qui 'n'affiche pas complet' est possible". O autor procura passar a idéia de uma pessoa inteira, mas que não se apresenta como auto-satisfeita, cheia de si mesmo, sem um lugar para o outro em sim. Ele fala de alguém inteiro, mas não completo ou repleto; o "completo" só é possível graças à presença do outro (N.T.). (subl. meu)

Deus não existe! (...eu rezo para Ele todos os dias), Jean-Yves Leloup, trad. Karin Andrea de Guise, editora Vozes, p. 28.

Não é bacana essa ideia de um desejo que não quer ser saciado para poder continuar desejando e buscando? É a antiga crítica à ideia do sábio na montanha. Acho que foi em O fio da navalha, do Somerset Maugham, em que aparece algo como "é mais fácil ser santo no alto de uma montanha", e o Larry (era Larry o nome do protagonista, eu acho), após uma experiência de iluminação mística, volta ao mundo para ser motorista de táxi e escreve um livro sobre pessoas que tiveram sucesso na vida. Algo assim. Nada muito diferente do percurso de Jesus Cristo, que se afastou durante anos para depois retornar para pregar, e praticar, seus mandamentos fundamentais, de amar a Deus e ao próximo.

Esse desejo que se quer desejo sempre é essa nossa necessidade de busca constante, e que já recebeu tantos nomes em tantas áreas do conhecimento. E ao mesmo tempo, aceitarmos a ideia de que somos seres desejantes pode nos ajudar a conviver com essa insaciedade. Talvez, parte dessa iluminação, ou realização, ou como quer que queiram chamar, seja exatamente aceitar e amar essa incompletude tão completa e plena.

Lembrei que encontrei essa ideia, talvez pela primeira vez, lendo Murilo Mendes, que, em algum lugar, disse que a fé, para ele, era uma fonte de inquietação, não de certezas. Acho que foi no livro de memórias A idade do serrote.

É a tal da sabedoria humilde, porque se reconhece incompleta e ignorante. É o combustível da busca, a gasolina da inquietação e, até mesmo, da angústia existencial.


Independente de crenças ou descrenças.


quinta-feira, setembro 08, 2011

A chave da memória

(...) Na manhã da segunda-feira tio Hakim continuava falando, e só interrompia a fala para rever os animais e dar uma volta no pátio da fonte, onde molhava o rosto e os cabelos; depois retornava com mais vigor, com a cabeça formigando de cenas e diálogos, como alguém que acaba de encontrar a chave da memória.
Relato de um certo oriente, Milton Hatoum, ed. Companhia das Letras, 3a. ed. p.34.
A associação foi instantânea. Essa "chave da memória" deve estar naquela casa das chaves em que a Emília, ao invés de desligar a chave da guerra, desliga a chave do tamanho e a humanidade se vê reduzida a dimensões liliputianas. Na história de Monteiro Lobato, Guliver ficou sendo o porco Rabicó. A chave da memória também deve ser a madeleine de Proust, ou o ratatouille servido ao crítico de gastronomia Anton Ego.

A chave da memória deve ser do tipo que tem senha. É preciso lembrar os números na seqüência certa. E devem ser várias chaves, uma vai abrindo a outra. E a gente vai lembrando das coisas à medida que essas chaves vão sendo usadas. E vamos esquecendo à medida que as vamos perdendo. E é tão esquisito achar uma chave que não se sabe de onde é. Na rua, no fundo de uma gaveta, numa caixa de coisas avulsas.

Uma vez, herdei a mesa de trabalho do meu avô paterno. Uma mesa enorme, de madeira escura. Quando me mudei, tive que me desfazer da mesa, mas guardei a chave. Por um bom tempo. Agora a chave foi perdida também. Mas ficou comigo por tempo suficiente para eu ainda poder vê-lo trabalhando em sua mesa, com penas de metal, caneta tinteiro, mata-borrão, numa época em que as canetas Bic já eram banais havia muito tempo. Ele mantinha criteriosamente suas contas em dia,  em caderninhos, livros-caixa. Uma caligrafia perfeita. Deixava a gente experimentar aquilo tudo, sujar os dedos de tinta. Ganhei também a caneta tinteiro dele. Minha tia, irmã mais nova do meu pai, a deu para mim há alguns anos. Meu pai. Eu bem que queria achar a chave da memória dele. Vou "fazer de conta" e pedir um pouco de pó de pirlimpimpim para a Emília, para dar um pulo na casa das chaves. E a chave da memória acaba sendo a ficção mesmo. Faz de conta que...



 

Sidarta, o jejum e a terceira margem do rio

Sidarta encontra-se com o comerciante, que lhe pergunta o que sabe fazer. Sidarta responde que sabe "pensar, esperar e jejuar".

"- E que valor têm esses conhecimentos? O jejum, por exemplo. Para que serve o jejum?
- Para muita coisa, meu caro senhor. Para quem não tiver nada o que comer, o jejum será a coisa mais inteligente que se possa fazer. Se, por exemplo, Sidarta não houvesse aprendido a suportar o jejum, estaria obrigado a aceitar hoje mesmo um serviço qualquer, seja na tua casa, seja em outro lugar, já que a fome o forçaria a fazê-lo. Assim, porém, Sidarta pode aguardar os acontecimentos com toda calma. Não sabe o que é impaciência. Para ele não existem situações embaraçosas. Sidarta pode agüentar por muito tempo o assédio da fome e ainda rir-se dela. É para isso, meu caro senhor, que serve o jejum."
 Sidarta, Hermann Hesse, tradução de Herbert Caro, ed. Record.

Reli Sidarta na recente viagem familiar a Minas Gerais, onde não jejuei, com toda a certeza. Não sei jejuar, tampouco pensar ou esperar como Sidarta. Sei, só de saber, não de ser mesmo, no entanto, que liberdade não é poder ter aquilo que se quer, mas simplesmente saber não querer. Não precisar, não ambicionar e, no limite, não ser. Não sei se é algo que eu queira aprender. Também desconfio que é o tipo de coisa que não se encontra na literatura. Ou se encontra? Ou se desencontra?

Ao final do livro, Sidarta toma o lugar do barqueiro, ajuda as pessoas a atravessar um rio. Ele, no entanto, já completou a travessia , na verdade, atravessou para a terceira margem do rio. O rio.

***

PS.: A conclusão de O conde de Monte Cristo:
"- Querido - disse Valentine -, o conde não acaba de nos dizer que a sabedoria humana cabe inteira em duas palavras?
"Esperar e ter esperança.""

O conde de Monte Cristo, Alexandre Dumas,
trad. André Telles e Rodrigo Lacerda, ed.Zahar

E assim, três textos literários tão díspares acabam se encontrando num post de blog porque um leitor encontrou neles um significado comum. É, literatura também é encontro, além do desencontro.

sábado, agosto 27, 2011

Alexandres Dumas, mosqueteiros e Monte Cristo

Um feliz reencontro com esses clássicos que a gente lê em adaptação quando estamos descobrindo a literatura sem saber e agora temos em tradução integral. Edições caprichadas da Zahar, traduzidas e anotadas por André Telles e Rodrigo Lacerda.
Espero que venham mais.

domingo, agosto 07, 2011

Doris Lessing, Virginia Woolf e a crítica literária

Escreve Doris Lessing na introdução à coletânea A casa de Carlyle, de Virginia Woolf:
Ela é uma escritora que alguns adoram odiar. É doloroso quando alguém cuja opinião você respeita profere um discurso de antipatia, ou mesmo de ódio, por Virginia Woolf. Sempre quero argumentar com essas pessoas: mas como você não consegue ver quão maravilhosa ela é... Para mim, suas duas grandes realizações são Orlando, que sempre me faz rir, um livrinho tão espirituoso, perfeito, uma preciosidade, e Passeio ao farol, que penso ser um dos melhores romances da língua inglesa. Mesmo assim, gente dotada do mais fino discernimento não consegue encontrar nada de bom a dizer. Quero protestar, afirmando que sem dúvida não se deveria dizer "os horríveis romances de Virginia Woolf", "o tolo Orlando", mas sim "eu não gosto de Virginia Woolf". Afinal, quando pessoas da mesma categoria, de discernimento equivalente, adoram ou odeiam o mesmo livro, o mínimo de modéstia, o mínimo de respeito pela notável profissão de crítico literário seria dizer: "Eu não gosto de Woolf, mas esta é apenas a minha inclinação."
Destaquei o final, pois essa sempre foi a minha opinião. Não gostar de um artista é uma questão pessoal. Não reconhecer a importância, o talento, a habilidade e o que mais um artista de quem não gostamos tem de positivo, é uma questão de discernimento. Existem uns tantos escritores que já li bastante, como Raduan Nassar, por exemplo, que julgava adorar, mas que, com o tempo, descobri que me fascinava, como o grotesco às vezes nos fascina, mas de quem não gosto. Mas quem pode, honestamente, dizer que Lavoura arcaica não é um livro fascinante? Ler gente assim, como Virginia Woolf, Raduan, ou Clarice Lispector, que escrevem coisas desagradáveis, que nos incomodam, e dizer que são ruins porque nos incomodam é confundir a obra com o efeito que ela nos causa.
E no caso de um crítico literário, ou resenhista, desmerecer uma obra por não ter gostado dela sem reconhecer que isso meramente é uma questão de gosto não é uma atitude de honestidade intelectual, mas sim de preconceito. Você pode dizer por que não gostou, até mesmo por que achou ruim. Mas também pode, e deve, dizer que não gostou, apesar de ser bom. E, principalmente, aceitar simplesmente que outras pessoas gostem de coisas que você acha um lixo por que encontram lá coisas que servem a elas e não a você, ou que até mesmo enxergam qualidades que você, ou eu, não tívemos olhos para ver.


O Fábio Sombra chegou da Flip e me trouxe uns livros de presente, um deles foi esse, A casa de Carlyle e outros esboços, de Virgínia Woolf, traduzido por Carlos Tadeu Galvão. Uma coletânea organizada por David Bradshaw e publicada aqui pela Nova Fronteira, com a citada introdução de Doris Lessing. Também me trouxe dois lançamentos do Rubem Fonseca, outro autor com quem passei a implicar mas que, mais do que reconhecer o valor, reconheço que me influenciou num nível tão pessoal que extrapola até mesmo a literatura. Só questiono se essa influência foi positiva ou negativa.

sexta-feira, julho 15, 2011

Banquete dos Mendigos: "NO PRINCÍPIO ERA O VERBO: SOBRE A IMPORTÂNCIA DA PRIMEIRA FRASE..."

"(...)Numa época de leitores impacientes, a primeira frase é quase uma cantada. Seu poder de sedução tem de ser forte, para que o leitor siga adiante."

Assim escreve o irmão Adriano no seu blog.

As primeiras frases que me vêm à cabeça?

"Encontraria a la Maga?"
E
"In a hole in the ground, there lived a hobbit."

Talvez as únicas que consegui memorizar, e tão curtinhas... E são de livros enormes, imensos, titânicos. E começam de maneira tão singela. Num deles, o amargo Oliveira, noutro, o puro e obstinado Frodo. Quem diria. De universos tão distantes, foram se encontrar nas minhas mãos leitoras. Frodo virou personagem de cinema. Oliveira, desconfio, poderia ter sido personagem de um filme da Nouvelle Vague, sei lá. Agora, acho que será cada vez mais esquecido. A culpa é dele mesmo, pois, no final, desencontrou-se da Maga, desencontrou-se de si, enfiou-se num barril de bosta onde resolveu se afogar. Sucumbiu a si mesmo. Frodo salvou-se. Não totalmente, mas sobreviveu a si mesmo.

E a frase que citei do Adriano, citei porque reforça essa minha impressão de que hoje os livros entram numa competição de vida ou morte com os outros meios, basicamente, os audiovisuais e a leitura expressa da Internet. Se não pegar o leitor de cara e "puxá-lo pelo nariz", como escreveu Cortázar, pode considerar o leitor perdido. A passagem do livro de papel para o digital tem bastante a ver com essa história. Algo como "se juntar ao inimigo". Mas não, não considero o livro digital um inimigo, a literatura digital sim, ainda é nova demais para merecer o respeito que um dia ainda poderá conquistar, transformada em alguma outra coisa.
Minha dificuldade não costuma ser com a primeira frase, mas com a última. Se não tenho um final, sou incapaz de iniciar o que quer que seja. Preciso de conclusões. Não gosto de mistérios que não se revelam. Não me importo nem um pouco de saber do final de um livro, ou filme, antes mesmo de conhecer o começo. O suspense persiste, pois sempre é preciso descobrir como se chegou até ali. Que o diga Homero, que já sabia disso desde o princípio, com sua história que começa in media res, como ensinava o Junito Brandão.

terça-feira, julho 12, 2011

The dream of the return

"Viajar la vida entera
por la calma azul o en tormentas zozobrar
poco importa el modo si algún puerto espera"

Pedro Aznar, letra, Pat Metheny, música. (http://www.pedroaznar.com.ar/poesias_popUp.php?mode=3&id=505)

Não há maior desamparo do que não ter para onde voltar, ou para quem voltar. Esposa, mãe, pai, família, terra natal, amigos. Regressar, reencontrar.

Em geral, esses regressos são internos, pois os lugares se vão, as pessoas também, mas o fato é que não nos deixam, não saem de nós. Os afetos, ou as mágoas. Regressar, reencontrar, redimir e reconciliar. A busca de uma vida muitas vezes é um esforço de regresso para si mesmo.

Retomar um velho texto datilografado e revivê-lo.

sexta-feira, julho 08, 2011

Os três mosqueteiros

Na introdução que Rodrigo Lacerda escreveu para sua tradução "definitiva" de Os três mosqueteiros, pela editora Zahar, acabo de ler o seguinte parágrafo:
"Tradicionalmente, Os três mosqueteiros era um volume obrigatório na biblioteca dos meninos e adolescentes, que se fazia acompanhar por outros clássicos romances de aventura: A ilha do tesouro, Robin Hood, O Sheik, Beau Geste, Ivanhoé, Tarzan, O último dos moicanos, Vinte mil léguas submarinas (para citar apenas um Júlio Verne), Winnetou etc. De piratas caolhos, passando por homens-formiga, soldados da Legião Estrangeira e índios americanos, tudo nesses livros era ação e emoção." (pág. 13-14)
Familiar, não? Desses aí que ele listou, li a maioria. Creio que todos em traduções adaptadas, muitos daquela coleção Clássicos da Literatura Juvenil, da Abril Cultural, outros tantos nas versões de bolso da antiga Edições de Ouro. Alguns resgatados em sebos, ou das prateleiras de uma biblioteca pública, como a Regional da Lagoa, onde pude encontrar praticamente todos os livros do Tarzan, jamais reeditados, muito menos retraduzidos. Aliás, se fossem relançados agora, os livros do Tarzan seriam vendidos com tarja preta e advertências de se tratar de literatura racista, muito provavelmente. Pois é, e eram mesmo. Racistas, colonialistas, imperialistas, mas absolutamente deliciosos e viciantes (o que agora virou elogio).
Para várias gerações, esses títulos foram a porta de entrada para a literatura. Existe um poema do Drummond em que ele se refere a sua leitura do Robinson Crusoé, não lembro do nome nem do livro em que está, agradeceria muito se algum leitor que se perdesse por aqui e soubesse, me ajudasse a refrescar minha memória.
Para os meninos esquisitos, que não jogavam futebol (bem, isso ainda é assim), muitos desses livros nos acompanharam na hora do recreio e em inúmeras outras horas da solidão acompanhada que os livros nos proporcionam.
Boa parte desses livros estão virando filmes, ou sendo refilmados pela enésima vez. É o caso dos Três mosqueteiros, cujo novo trailer já está passando por aí. Possivelmente, estará cheio de adaptações. O trailer já dá ideia de uma ação bem mais intensa do que em qualquer outra versão anterior. Possivelmente, a história ficará em segundo, terceiro, décimo plano. O que vale agora é muita coreografia e efeitos especiais. Bom, melhor não fazer juízos preconcebidos e esperar pelo filme. Mas desconfio que será algo muito diferente dos Três mosqueteiros que eram quatro, e que se transformavam em cinco, quando eu entrava na história. Aliás, continuavam a ser quatro, pois eu, quando os lia, me transformava imediatamente em D'Artagnan.
O fato é que esses livros não pegam mais a molecada de hoje. Perderam o espaço nas prateleiras para a nova literatura inaugurada pelo Harry Potter. Quem não gosta do HP? Eu gosto. Li tudo, vi os filmes e curti. Também curti as versões cinematográficas do Senhor dos anéis. Mas, meus filhos não leem o que eu li (e guardei, esperançosa e ingenuamente, para eles ao longo de várias décadas). Acham velho, os volumes não os atraem, a linguagem não empolga e é difícil.
Nostalgicamente, sinto mesmo saudades das tardes com a cara enfiada numa daquelas adaptações "juvenis", que, quando muito, tinham minha audiência disputada por um filme velho do Jerry Lewis ou do Elvis Presley na Sessão da Tarde. Agora, os livros compartilham a curtição juvenil com os chamados conteúdos da Internet ou da TV a cabo. Imagine só se quando eu tinha 10 anos existisse um canal de TV com desenhos 24 horas? Teria lido bem menos, com toda a certeza. Não os culpo, só lamento que coisas boas assim estejam se perdendo, substituídas por outras que não empolgam a mim, mas empolgam a eles. Sejam felizes, pois, com certeza, são bem mais "sociais" do que eu fui.

terça-feira, junho 08, 2010

Como se ele estivesse gripado

Meio de saco cheio da literatura, resolvi postar essa mensagem meio sem nada a ver com o blog, mas que tem a ver com as coisas que me definem, a literatura entre elas, mas em menor escala no momento.

Hoje passei a tarde com meu pai. Minha mãe teve que sair e estamos sem acompanhante.

Cheguei lá, ele tinha acabado de deitar. No meio da tarde, fui até o quarto olhar se estava tudo calmo. Ele dormia coberto por uma colcha de tricô feita pela mãe dele, minha avó. Dormia, simplesmente. Pensei que ele poderia estar apenas gripado, com febre, como tantas vezes esteve.

Quando adoecia, antes do Alzheimer, meu pai gostava de ficar quieto na cama dele, sem ninguém em cima para chateá-lo. Uma febre, ficava rouco. Ia tomando remédio, descansando, se alimentando e aí, ficava bom.

Uma das coisas que sempre volta à minha cabeça agora, quando o vejo com ar abatido, sem falar muito, é que parece que ele está apenas gripado. Fica aquela esperança iludida e tola, essas coisas que passam pela cabeça da gente. E se ele estivesse apenas gripado? Semana que vem estaria bem. Como é difícil a idéia de uma situação irreversível entrar de fato na cabeça da gente, né?

É como passar diante do prédio onde moraram os meus avôs, por anos e anos. Que coisa estranha eles não estarem mais lá. Mas a lembrança é tão viva que é como se ainda estivessem.

Engraçado que a doença do meu pai fez eu me lembrar de muitas coisas legais dele que havia enterrado debaixo das mágoas e frustrações. Hoje eu sinto uma saudade dele que nunca imaginei que sentiria. Por isso que às vezes penso que aquilo é apenas uma gripe, pois o sinto saudável e carinhoso lá do jeito dele de uma maneira muito viva dentro de mim. E isso é bom.

Em tempo, se alguém conhecer um acompanhante de confiança aqui no Rio, por favor, escreva para mim: daniel.estill @ gmail . com (é só tirar os espaços)

sexta-feira, abril 30, 2010

Embrulho para presente

Em uma de suas visitas ao Rio de Janeiro, meu avô me levou à Biblioteca Nacional. Eu devia ter uns oito anos. Começara a ler há pouco tempo e os livros recém começavam a lançar seu feitiço sobre mim. Feitiço, maldição, benção. Já foram isso tudo. Hoje permanecem um desafio, uma provocação, como nunca deixaram de ser.

Daquela visita, lembro-me de um balcão negro, na altura do meu nariz. Meu avô conversava com o homem atrás do balcão, pareciam se conhecer, mas era improvável. Meu avô não morava no Rio, vinha de longe, vinha da cidade onde eu nasci e da qual fui separado aos quatro anos de idade. Estar com ele era um pouco da minha primeira infância que voltava para essa outra infância de oito anos, tão diferente, da qual guardo poucas lembranças de felicidade. Não, não se conheciam. No entanto, tornaram-se cúmplices.

O homem do balcão me deu um presente. Preparou o embrulho ali mesmo, na minha frente. Com um papel azul, brilhante, embrulhou algo numa minúscula caixinha, do tamanho de um dedal. A caixinha não tinha peso e ele disse que eu só poderia abri-la depois de sair. Meu avô ria, quase que para si, mas dizia-me, sério, que era um presente valioso. Uma minúscula caixinha e papel brilhante azul, leve como um pedaço de vento.

Naquele dia, conheci a Biblioteca Nacional. Seus mármores, arquivos, escadas. A impressionante sala de leitura com suas colunas altíssimas e mesas de estudo enfileiradas. Não me oprimia, me sentia bem lá. Aliás, eu me sentia bem em qualquer lugar em que estivesse com meu avô.

Finalmente, saímos. Descemos a escadaria na avenida Rio Branco, caminhamos até o ponto de ônibus. Eu, naturalmente, estava ansioso. Tinha oito anos e meu avô acabara de me mostrar uma parte do mundo que se tornaria parte de mim para sempre. Então, desfiz o embrulho, um origami, uma dobradura fechada em torno do nada. O presente era vazio. Entendi que era uma brincadeira, achei graça, apesar do desapontamento. Afinal, o que poderia caber numa caixinha daquele tamanho que pudesse ter qualquer valor? Meu avô talvez soubesse. O homem do balcão também. Deram-me um presente vazio.

Ao longo dos anos, fui preenchendo aquele pequeno embrulho. Acho que todos os livros que eu li estão lá. Estão guardados, numa caixinha vazia, cheia de histórias e de lembranças de meu avô e de um passeio pelo centro do Rio quando eu tinha oito anos, uma infância que pode não ter sido das mais felizes, mas foi repleta de significados que ainda se revelam novos, tanto tempo depois.

domingo, fevereiro 22, 2009

José Saramago responde a Juan Arias

José Saramago responde a Juan Arias:

"— Nunca lhe aconteceu de parar e pensar que afirmou algo que podia ser o contrário?
—Digo-o de outra forma: há que se parar e perguntar-se o que se está a dizer. Se o fizermos, veremos que não temos outro remédio se não analisar o que se diz, e então percebemos que às vezes dizemos coisas que não têm o menor sentido.

Ou que às vezes o dizemos porque outros o disseram, sem refletir sobre isso.
—É, e repetimos coisas que de uma forma passiva se instilaram dentro de nós e nos impregnaram. Estou a dizer coisas que não saõ minhas. Certo, mas, na verdade, que coisas são minhas? Por isso digo que somos feitos de papel. O que é verdadeiramente nosso? Muito pouco, quase nada. Talvez todos sejamos os outros.

É o que dizia Leonardo Sciascia, nosso querido amigo e escritor siciliano, já falecido: no fundo nunca se escreve nada de novo, mas se reescreve.
— O que não sabemos é desde quando. Realmente, das frases dos literatos se aprende muito. Diante dessa frase de Sciascia, um escritor que sempre admirei muitíssimo, surge-nos a questão: e desde quando nos reescrevemos? Porque deve ter havido um momento em que tudo era novo, e depois disso nada mais é novo, estamos a repetir tudo. Nunca sabemos quando o novo principia."

in: José Saramago: o amor possível. Juan Arias. Ed. Manati.


E aí, me pergunto. Quando e por que escrever, em lugar de ler desenfreadamente? Ou mesmo falar, em lugar de ouvir atentamente? Quem sabe se nos calarmos não consigamos aprender alguma coisa de fato e paremos de nos repetir?

quarta-feira, julho 02, 2008

O inusitado

Talvez uma das características que mais me causem deleite na leitura de Cesar Aira é a sua capacidade de surpreender com o inusitado. Estamos sempre beirando o limite do verossímil, e, ocasionalmente, ele trata de romper esse limite sem fazer cerimônia; outras, apenas sugere e esbarra.
"Lu Hsin, sentado a la cabecera de la mesa, ante el silencio absorto de los invitados, se llevó a los labios una tacita de té... azul. Tomó un sorbo de té azul, respiró, y tomó otro. Terminó la tacita de un sorbo más, y volvió a llenarla com el té azul de una tetera blanca de porcelana traslucida, llena hasta la mitad. Cada uno de los invitados, cinco graves señores mayores, estava sentado frente a una taciyta idéntica a la del anfitrión, llenas asimismo de té azul. Habían obsrvado atentamente a Lu Hsin, aun sin parecer que lo hacían. Como si salieran de un sueño, o dentro de é adquirieran movimiento, alzaro todos a un tiempo la mano derecha, tomaron sus tacitas, y se las llevaron a los labios. Un sorbo, en el silencio perfecto: cinco sorbos. Lo degustaron, pensativos. Reinaba la impresión de que a ellos no se los podrían engañar, no digamos con té chasco, per ni siquiera con um buen colorante puesto en la infusión. Y a pesar de esa certeza, estaban en trance de comprobar una verdad inverosímil. Vaciaron las tacitas confirmando um juicio. Las devolvieron a la mesa con ruiditos secos, espaciados: la música secundaria del té.
Es té, indudablemente — dijo uno de ellos. Los otros asintieron.
Se sucedieron entonces las congratulaciones a Lu, teñidas de disculpa, como se dijeran que había sido un trámite burocrático más.
Los cinco ancianos, reconocidos expertos en arte, habían sido jurados en un concurso de pintura com té, de los que son tradicionales en nuestro país. Con las distintas variedades de té, aplicadas con pincel sobre los papeles clásicos de los acuarelistas, se obtienen exquisitas coloraciones pardo gresáceas, doradas, amarillas, ocres en todas sus tonalidades, anaranjadas, y hasta un tenue rojo. Pero, nunca azul; de ese color no había antecedentes em los cuantiosos anales de la pintura com té. Todos los colores de un bosque en otoño, pero no el cielo que se alza encima de las copas de los árboles. Todos los colores de un crepúsculo, pero no el que está antes de las transformaciones. Sin embargo, en este concurso se haía presentado una obra íntegramente pintada en azul, en lo más  diversos matices del azul, desde el profundo y opaco en el que viven los pulpos, hasta el aéreo y lavado com blanco, en el que flotan nas nubecillas del mediodía. Las obras se juzgabán únicamente por sus valores pictóricos; hacerlo de otro modo habría segnificado rebararse a un nivel artesanal, o de mera curiosidad o hobby. El cuadro azul había superado a los demás presentados, por su inspiración y su destreza técnica; era el mejor, pero ¿era té? Su autor, que no era otro que Lu Hsin, había debido invitar a los jurados a probarlo en su casa. Ahora, el final requisito había sido satisfecho. Bebieron su té, y todos en paz."
Una novela china, César Aira. Ed. Contemporánea.
Uma das diversões de se estudar a literatura é ir descobrindo suas camadas. Após a leitura do Pequeno manual de procedimentos, a coletânea de ensaios recolhidos e organizados por Eduard Marquardt e Marco Maschio Chaga, pela editora Arte & Letra, deslizar por um outro livro de Aira é descobrir seus segredos e manobras. É encontrar, na forma de ficção, os preceitos descritos e admirados por ele, seu famoso procedimento, sua escrita disciplinada, seu "fugir para frente". Mas, nenhuma preceito, procedimento, concepção teórica, ou o que seja, adiantaria se não fossem adotados por uma imaginação extrema e desimpedida. Uma capacidade de criar e inovar extrema, sem cair em experimentalismos herméticos e desagradáveis. Ele escreve com uma liberdade e descompromisso invejáveis.
Rio, 020708

terça-feira, julho 01, 2008

Estranhos mundos superpostos

Fala a narradora, a morte, logo nos primeiros parágrafos:
"[...] Basta dizer que, em algum ponto do tempo, eu me erguerei sobre você com toda a cordialidade possível. Sua alma estará em meus braços. Haverá uma cor pousada em meu ombro. E levarei você embora gentilmente."
De A menina que roubava livros, Marcus Zusak. Tradução de Vera Ribeiro. Ed. Intrínseca. ©2006
Fala o narrador, logo nos primeiros parágrafos:
"¿Qué ocurre cuando una vida se desvanece? Quizás otro color desciende sobre el mundo, y se agrega a la gran suma imperfecta y fluctuante."

De Una novela china, César Aira. Ed. Contemporánea. ©1987
Literatura é influência. E, como eu disse antes, existem outras realidades, a ficção se comunica ao longo de um mundo plano e horizontal, percorrido por leitores.  Caso contrário, como dois escritores tão distantes e díspares fariam a mesma associação entre morte e cor? Combinadas as palavras, temos corte.

quinta-feira, junho 26, 2008

Dos começos

Ia dizer inesquecíveis, mas podem me acusar de plágio ou falta de originalidade, a causa do Sérgio Rodrigues e seu Todoprosa. Mas, é verdade, sempre apreciei bons começos, praticamente definem o andamento de todo o resto da leitura.

Dois deles ficaram gravados na memória, o que é difícil, raríssimo, uma vez que minha memória. Bem.

“Encontraria la Maga?”, de O jogo da amarelinha, e “In a whole in the ground, there lived a hobbit”, de O hobbit.

Quando fui a Paris com a esposa, pedi que ela esperasse de um lado da Pont Neuf, eu iria até o outro, depois voltaria e nos encontraríamos no meio. Ela nada entendeu, a minha Maga, que quase nada tem de cronópio e muito de fama. Ah, os papéis que atribuímos a nossas mulheres sem que elas nada saibam...

Pode parecer esdrúxulo misturar Cortazar e Tolkien. Para mim, não. Ambos são, ao fim e ao cabo, literatura de viagem. Adoro Tolkien, adoro suas intermináveis descrições das paisagens da Terra Média, um mundo com uma proporção de realidade que chega ser difícil acreditar que não é de carne e osso, pau e pedra e pó, e nunca mais. E esse começo de O hobbit, bem era um ser minúsculo que um dia botou os pés para fora de seu buraquinho no chão e se perdeu, depois se achou, mas aí já estava irremediavelmente perdido. Horácio Oliveira também era um ser minúsculo, ainda assim nunca coube em seu buraquinho original e teve que sair. Não voltou mais. Quando voltou, não se achou. Irremediavelmente estrangeiro de si. Lamentavelmente, perdeu-se de sua Maga também. Talvez, Rayuella pudesse ter começado assim: "Perderia la Maga?". Sim, perderia. E isso me causa uma profunda tristeza, pois sei bem a importância de encontrarmos a nossa Maga e a mantermos do nosso lado. Por menos Maga que seja. "Matem o cachorro!", gritava Oliveira no final. É, matem o cachorro.


sexta-feira, fevereiro 15, 2008

Tradição oral

A cultura oral parece estar ganhando força lá em casa. O pequeno leitor e eu estamos empolgados com a leitura de A bússola de ouro, enquanto a mãe leitora e a pequena leitora estão imersas em A viagem de Théo, sendo que boa parte da leitura está sendo feita pela pequena.
Após botar as crianças na cama, o pequeno leitor a contragosto ao final de cada capítulo, eu e a esposa leitora nos metemos com o primeiro Espinosa, do Luis Alfredo Garcia-Roza.

Fora isso, terminei de ler Fantasma, do José Castello, que aliás anda sumido. Gostei muito, muito mesmo. Um humor ótimo, ainda que ácido, com toques de amargo, que acho que ele devia transpor para seus artigos por aí. Literatura também é diversão, ainda que ele toque em algumas coisas bem delicadas. Talvez ainda escreva mais longamente sobre esse livro.

E agora, comecei a ler o Dois irmãos, do Milton Hatoum. Estou gostando, principalmente por conhecer um aspecto de Manaus diferente, mais urbano e menos floresta tropical. E a história parece ter a força passional libanesa visível no Lavoura arcaica, do Raduan Nassar, por exemplo. Amores e ódios extremos e absolutos. Parece ser mais uma versão do velho embate de Caim e Abel, Esaú e Jacó...

segunda-feira, janeiro 28, 2008

Parménides, César Aira

A livraria Cultura tem alguns livros em espanhol do César Aira. Comprei (e li!) Parménides, livro de 2006. Diferente de Noites de flores e de Um acontecimento na vida do pintor viajante, ainda assim, genial. Vou colocar uns trechos por aqui:
1
Ésta es la historia triste del escritor Perinola, que vivió acomienzos del siglo quinto antes de Cristo en una colonia griega dela costa italiana del sur. Cuando empezó la historia, aunque ya estaba empezando a dejar de ser joven, era un escirtor joven, una "promesa" como suele decirse; no había gran cosa en la que basar la promesa, pero con poco alcanza, y hasta con nada, si lo que sepromete es algo tan iverificabel com la poesía. En realidade no había escrito casi nada, y lo habían leído menos, pero eso no significaba que la consideración (un tanto ambigua, además) en que lo tenía un puñado de entendidos ou supuestos entendido en poesía careciera de todo fundamento. A veces se dan casos de adivinación social, que suelen entrar en la categoría de profecias autocumplidas. Eso puede deberse a que son tan escasos los escritores bueno que cuando aparece uno, entre mil malos, casi no necesita escribir para que alguien se dé cuenta. Y además está el hecho de que las falsas adivinaciones o las promesas que no se cumplen no se toman en cuenta.
(...)

Bem, a história que segue descreve os anos de convívio de Perinola e do filósofo pré-socrático Parménides, que, por não ter tempo ou preparo para escrever, contrata os serviços do jovem promissor para escrever seu livro, por ele. Perinola seria o primeiro ghost writer da história. Parménides entrou para história como o filósofo que incluiu a discussão do ser e o não ser na filosofia ocidental. Questão insolúvel sobre a qual os filósofos se debatem eternamente. Pois, César Aira usa a literatura para dar uma rasteira na filosofia e contar sua própria versão sobre o surgimento desse dilema hamletiano.

quinta-feira, janeiro 10, 2008

Coisas que eu gostaria de ter escrito (ainda o sono e o tempo)

"É muito tarde, minha cara, e ainda assim vou dormir, sem merecer. Bem, dormir mesmo não vou, apenas sonhar. Como ontem, por exemplo, quando no sonho eu andava até uma ponte ou um cais em cuja amurada por acaso havia dois telefones; eu levava os fones ao ouvido e ficava pedindo notícias dos "confins do mar", mas do telefone só vinha o bramir do oceano e um cântico sem palavras, triste, impressionante. Mesmo depois de perceber que nenhuma voz humana conseguiria sobrepor-se a tais ruídos, não desisti e ali fiquei."
Sonhos, Kafka, trad. Ricardo F. Henrique. Iluminuras


Hoje, estou especialmente sonolento, ainda que muito desperto.

O tempo parado de João Gilberto Noll

Do outro lado da rua, há um sebo. Beta de Aquários. Em sua vitrine, havia outro dia um lote de livros de João Gilberto Noll. Seis livros exatamente, todos da Editora Francis. Os preços variando de R$ 10 a R$ 15. Gastei R$ 65. Eram novos. Alguém teve prejuízo, outros lucraram.
Entrar numa livraria e roubar o tempo, comprar livros, é roubar dinheiro da família. Ler é roubar ainda mais tempo, ao mesmo tempo que se desfruta do objeto do crime. O tempo da leitura passou a ser criminoso e marginal.

Comecei a ler por Mínimos, múltiplos, comuns. Um livro estranho. Diz a apresentação, de Wagner Carelli:
João Gilberto Noll passou três anos e quatro meses na aplicada disciplina de escrever toda semana duas narrativas completas, e de porte incomum: cada relato estava confinado a um máximo de 130 palavras.


A primeira delas, que abre a seção chamada Gênese e que começa pelo Nada:
Nadas

Tecido Penumbroso
Como posso sofrer porque as coisas pararam? Elas andavam tão estouvadas! Por que não deixá-las dormir agora um pouco? Tudo se aquietou, é noite, o mundo vive pra dentro, cegando-se ao sol do sonho. Preciso um pouco desse conteúdo inóspito, ermo com um quase-nada. Não, não é morte, é uma espécie de lacuna essencial, sem a aparência eterna do mármore ou, por outro lado, sem as inscrições carcomidas. Pode-se respirar também na contravida. Depois então, a gente volta para o velho ritmo; aí já não nos reconheceremos ao espelho explícito, tamanha a qualidade desse tecido penumbroso que provamos.
Eu queria achar essa porta para um não-mundo, um não-tempo. Não se trata de uma busca do Nirvana, de fusão com o cosmo, de iluminação. Sequer uma passagem para um mundo mágico no fundo de um armário. Nada disso, ainda que tudo isso. Apenas poder ausentar-se. O mais próximo que já cheguei foi através da leitura e da escrita. Só que, ao retornar, as horas tinham se passado, o relógio não parou. E me vi de volta às horas, as horas, sem realmente ter saído delas. Acho que só mesmo a morte, e nem a morte é garantia de escapar ao tempo.
É melhor ler um livro, as próximas 130 palavras de Noll, talvez. De madrugada, quem sabe, quando as coisas adormecerem. Mas aí, estarei roubando o tempo do sono, um roubo impossível, pois a vítima sempre se derruba o criminoso na ressaca do dia seguinte.

quarta-feira, novembro 28, 2007

O tempo da leitura

O tempo para leitura é um dos mais subjetivos que há. O da escrita também, mas isso é outra conversa.
Muita gente diz que há muito tempo não lê um livro por falta de tempo. Mas, não é por isso não, é por falta de coisas interessantes para ler. O Harry Potter, por exemplo. Todo mundo leu. Cada novo volume era um tijolo maior e as pessoas os lêem em dias, ou horas, eu inclusive.
Li o último volume em praticamente um dia, certamente em menos de 24 horas. Era uma necessidade, era preciso acabar para me livrar daquilo, da necessidade de ler o que eu já sabia, que Harry não ia morrer e que venceria o Voldemort. Quem é que não sabe o final da maioria das histórias que lemos (ou assistimos no cinema)? Não se trata de chegar ao final, mas de tudo o que acontece até lá. E, se a história for envolvente, o tempo da leitura invade o tempo de tudo o mais. "Mas", alguém pode dizer, "isso é leitura de consumo". Claro que é. E daí? São letras, palavras, frases, parágrafos e páginas, a base de toda a leitura. O tempo, na verdade, é aquele que precisamos para compreender o que lemos. Se a compreensão é direta e sem floreios, a leitura corre. Se precisamos elaborar e refletir, invariavelmente, o tempo diminui.

segunda-feira, novembro 19, 2007

Tradução de livro sobre tradução (Eco)

Fiquei muito honrado por receber um comentário de JK em meu blog, não conhecia meus poderes mediúnicos de atrair vozes do além. :)
Bom, JK, brincadeiras a parte, o que você escreveu foi:
" É curiosa essa coisa de tradução de um livro sobre tradução. Gostaria de ter mais opiniões a respeito..."
Acho que a tradução de um livro sobre tradução não é diferente da tradução sobre qualquer outro assunto, a não ser talvez por ser algo que desperte um interesse diferente por parte do tradutor. Eu vou falar mais sobre isso quando terminar de ler o livro do Eco, o que deve acontecer em breve. Existem alguns pontos de interesse sim e vou comentá-los. Essa conversa começou lá na comunidade dos tradutores/intérpretes do Orkut, não teve grandes desdobramentos, mas, obviamente é um tema de especial interesse para quem traduz.
Por ora, estou gostando bastante do texto traduzido. Não conheço a tradutora, Eliana Aguiar, mas conheço a Raffaella, que fez a revisão técnica e sei que ela tem background teórico, acadêmico e prático, para garantir um trabalho bem feito

Afora isso, JK, espero que você esteja com boa saúde e mais vivo, ou viva!, que um peixe na água fria!

domingo, novembro 18, 2007

Fantasma, José Castello

Apenas para registro memorial. Estou lendo esse livro do Castello a passo de lesma, em meio a tudo o mais (resenhas, traduções, cão operado na casa dos pais, filhos, dívidas...)
Estou me divertindo muito, é um humor como o rombóite, que não existe mas dói. Creio ser o único romance publicado dele. Em um passeio fantasmagórico por Curitiba, em que a própria cidade tem mais atmosferas do contornos. Espero, ao final, poder escrever mais longamente sobre o livro. Até por que, convivo em meu dia-a-dia com curitibanos típicos
deslocados no Rio de Janeiro. Pessoas por quem tenho profundo afeto, respeito e admiração e a sorte de serem meus sogros.

sábado, novembro 10, 2007

Originalidade

Não existem duas pessoas iguais no mundo. A diversidade é o que nos dá a certeza de que a literatura, e a arte de modo geral, podem sempre encontrar caminhos de renovação. Foi assim e não vejo qualquer motivo para que isso mude e que seja possível decretar a morte de qualquer
forma artística. A humanidade se renova, as sociedades se modificam, as cabeças acompanham, quer queiram ou não. E o que se escreve, fatalmente reflete isso.

Assim também como o que se lê. Uma mesma obra tem a força de se renovar com os tempos, com novas leituras de novos leitores, ou com novas leituras de um mesmo leitor, ou releitor.

Volta e meia me caem nas mãos livros de autores "novos". Seja para fazer uma resenha, seja para um parecer editorial. Todos são diferentes e originais, o que não quer dizer que sejam necessariamente bons por serem originais. Quer dizer apenas que a renovação é sempre possível. Por isso estamos sempre em busca de novas leituras, de autores novos ou antigos.
Cada leitura é sempre uma primeira vez.

quarta-feira, outubro 24, 2007

Quase a mesma coisa, Umberto Eco

Estou começando a ler o Quase a mesma coisa, do Umberto Eco, tradução de Eliana Aguiar e revisão técnica de Raffaella Quental, pela editora Record.

Um livro sobre tradução do Umberto Eco é ótimo para a nossa quase invisível profissão. É importante chamar a atenção para o nosso trabalho. Em geral, quando falam de tradutores e tradução é para botar defeito, raramente se escreve na imprensa algo sério sobre o ofício.

Fora isso, o Eco fala de coisas que, quem traduz, já sabe há muito tempo, mas é bom ver em livro, principalmente livro de Umberto Eco. Por exemplo:

"(...) O tradutor, ao contrário, sempre traduz textos, ou seja, enunciados que aparecem em algum contexto lingüístico ou são proferidos em alguma situação específica." (pág. 49)
É importante que as pessoas percebam isso muito bem. Muita gente acha que traduzir resume-se a traduzir palavras, bastando para isso olhar no dicionário. Para os clientes que compram tradução, isso é especialmente importante. Quando dizemos a um cliente que cobramos por palavra, às vezes perguntam coisas do tipo "E as palavras repetidas? Tem diferença de preço para palavras grandes e pequenas?". Aí, é preciso explicar que a palavra (ou lauda, ou página, ou caractere) é apenas uma unidade de cobrança, que na verdade, o trabalho do tradutor é traduzir o texto como um todo.

O tipo de leitura que um tradutor faz do texto é algo para um outro post. Por enquanto, fico por aqui, só para não parecer que o blog estava abandonado de vez.

terça-feira, fevereiro 27, 2007

Cesar Aira

Eu não conhecia. Fui conhecer ao ler dois livros para resenhar para O Globo. O resultado está aqui:
http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/post.asp?cod_post=48706
É o primeiro argentino que leio a fugir descaradamente da sombra onipresente de Borges ou do projeto de totalidade do absurdo de Cortázar. Diferente de tudo o que já li.

Nada contra Borges ou Cortázar, muitíssimo pelo contrário. Mas, como o próprio Aira disse em alguma entrevista que achei ao fazer as pesquisas para a resenha, Borges é uma presença tão forte na literatura argentina que é preciso um esforço para se livrar dele.
Acho que isso vale para todo mundo. Ler Borges é uma experiência total de literatura e é muito difícil "livrar-se" de sua influência. Uma influência tão forte, que essa nota era para ser sobre Cesar Aira e acabou sendo sobre Borges! Mas, Cesar Aira, como eu disse na resenha, dá uma gargalhada na cara da literatura. Uma ruptura necessária na mesmice. Recomendo para qualquer escritor iniciante. É a tal fuga dos clichês, a "quebra dos paradigmas" (argh!).

O sonho de Kafka

Na página 48, do livro Sonhos, de Franz Kafka, traduzido por Ricardo F. Henrique, ed. Iluminuras, está o sonho a partir do qual escrevi o conto Kopakabana. Eis aqui:

"Sonho há pouco: com meu pai andando de bonde em Berlim. A atmosfera metropolitana era dada por inúmeras cancelas destribuídas a intervalos regulares, pintadas em duas cores e com as extremidades rombudas e polidas. De resto, tudo era vazio, mas a quantidade dessas concelas era enorme. Chegamos a um portão, descemos do bonde sem perceber, atravessamos o portão. Atrás dele começava uma parede muito ingreme que meu pai foi escalando quase dançando, com tanta leveza que balançava as pernas no ar. Sem dúvida era uma certa desconsideração o fato de ele não me ajudar, pois eu me esforçava muito para subir, ia de quatro e escorregava várias vezes, como se a parede se tornasse ainda mais íngreme sob meu corpo. Também era muito desagradável o fato de a parede estar coberta de excremento humano que ia grudando em mim, aos flocos, sobretudo no peito. Abaixando o rosto eu percebia a sujeira e tentava limpar com a mão. Quando finalmente cheguei no alto, meu pai, vindo do interior do edifício, abraçou-me e cobriu-me de beijos. Ele vestia uma farda imperial da qual eu bem me lembrava, curta, fora de moda, estofada por dentro como um sofá. "Esse Dr. von Leyden! É um homem extraordinário!", exclamava sem cessar. Mas ele não tinha visitado o homem como médico, mas como alguém que vale a pena conhecer. Eu tinha um certo receito de que me obrigassem a também ir até ele, mas não foi o caso. À esquerda atrás de mim vi um homem sentado de costas num aposento que era todo de vidro. Ficou claro que era o secretário do professor e que meu pai na realidade só falara com ele, e não com o professor em pessoa, mas que mesmo assim tinha reconhecido os méritos do professor através do secretário, de modo que realmente podia julgar o professor como se tivesse falado pessoalmente com ele.

Diário, 6 de maio de 1912
"

Comprei o livrinho numa das mais autênticas livrarias do Rio de Janeiro, a Leonardo da Vinci, por preciosos R$ 33,00.
Agradeço de coração as palavras amigas dos colegas tradutores, da comunidade orkutiana Tradutores e Intérpretes.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Kopakabana

Como disse aí em baixo, em janeiro, fiz a oficina do José Castello, na Estação das Letras. Foi muito bom, pena que foi curto.
Ele passou dois exercícios. Leu a narrativa de um sonho de Kafka para nós e pediu que escrevessemos algo a partir disso. O outro "desafio" era escrever sobre Copacabana sem escrever sobre Copacabana. Ou seja, fizemos uma lista de 50 palavras proibidas, incluindo praia, areia, calçadão, turista, mulher, sol, pivete, camelô, enfim, todas esses clichês infalíveis sobre o Rio e, mais especificamente, sobre Copa. A idéia era fugir dos lugares comuns e tentar falar do bairro de maneira inusitada. Parece que consegui.
Eu juntei as duas coisas e escrevi Kopakabana (http://tinyurl.com/yuxfdd), o "professor" gostou e recomendou a publicação no Rascunho. Está lá, para quem quiser ver.
Faz tempo que o Rio de Janeiro não é mais o Rio de Janeiro. Estamos afundando numa cidade cinzenta, como um cenário de Kafka e estamos nos transformando em insetos, sim. Esse conto mostra como eu, leitor, leio a nossa cidade, cada vez menos tropical. Naturalmente, essa é a leitura que eu faço do meu conto. Mas, no momento em que outra pessoa ler, o conto passa a ser dela e ela (você?) será o autor da sua leitura.
Vou procurar o sonho de Kafka que está por trás da minha história para colocar aqui.
Kafka foi uma leitura importante para mim, acho que ninguém passa incólume por ele. Li umas tantas coisas, faz muito tempo e tudo meio que se mistura. Acho que essa mistura está presente nisso que eu escrevi. Chamam a isso de influência, nesse caso, bem explícita e intencional. Curioso pensar nas influências que não conseguimos identificar. Será que todos os escritores de que gostamos influenciam a gente? Acho que sim, a idéia é essa. Literatura é influência.

quarta-feira, dezembro 20, 2006

terça-feira, novembro 28, 2006

Outras realidades

Estou às voltas com Calvino, o ítalo.
Andei longe do blog, por outras atividades mais prementes. Outras realidades que exigiam minha presença, não desenvolvi, ainda, o dom da ubiqüidade.

No entanto, cheguei a uma conclusão importante, por mera observação empírica. Outras realidades têm direito à existência, e existem, de fato. Só que por serem outras, existem de maneira diferente da nossa. Uma delas é a realidade das criações artísticas. Um mundo onde as obras se sucedem, como as cidades, os mares e os acidentes geográficos em nosso planeta. Você pode andar por uma praia, de uma ilha, e encontrar Robinson tentanto arrastar uma enorme canoa para o mar. Avance mais um pouco e verá, ao longe, um cavaleiro bem magro, num cavalo derreado, seguidos por um escudeiro roliço. Cuidado com as grandes planícies, pois você pode ser atropelado por hordas de guerreiros de qualquer época, pois esse é um cenário recorrente de todos os períodos e universos. Imagine esse planeta, esse universo das obras literárias. Assim como o nosso, também infinito. Sabemos que jamais o percorreremos por inteiro.
O universo da literatura está em nossas mentes, coletivamente, comunica-se, interage. Numa concepção borgeana, existem lugares das obras escritas, das obras em andamento e do vir a ser. É uma realidade, diferente dessa física, mas que tem existência. Um mundo que se poderia chamar de platônico, por conceitual, mas não me agrada a idéia platônica de cópias imperfeitas. Criações imperfeitas, por incompletas, talvez. Assim como a nossa, essa outra realidade vive em mutação constante, mesmo quando se trata de obras supostamente acabadas. Um ponto final
pode facilmente se transformar em dois pontos, travessão, ou reticências. E o mundo se transforma novamente.

sexta-feira, agosto 25, 2006

A pequena leitora faz poesia sem perceber

A lua não está minguante,
Não está crescente,

Está sorridente! :-)

Carlos, Murilo e Pedro

Se fossem meninos, amigos, e se encontrassem num pasto de uma fazenda qualquer de Minas Gerais:
- Carlos estaria lendo Robinson Crusoé, sentado sob uma mangueira.
- Murilo estaria arremessando pedras para o céu, na esperança de que se incendiassem e virassem novas estrelas.
- Pedro estaria observando-os atentamente, fixando o momento em sua memória, mas sem saber disso, naturalmente.

quarta-feira, agosto 23, 2006

A suprema interrupção

Em O último leitor, Ricardo Piglia fala do horror de Kafka às interrupções de seu trabalho de escritor. Pedro Nava cometeu a suprema interrupção ao suicidar-se ao final do primeiro capítulo daquele que seria seu último volume de memórias, Cera das almas. A resenha do livro incompleto de Nava saiu no Rascunho de agosto, que também traz um especial sobre Guimarães Rosa e os 70 anos de Angústia.

O link para a resenha sobre o Nava é:
http://tinyurl.com/elwtj

Mas vale dar uma boa lida no resto do jornal.
 

quinta-feira, agosto 17, 2006

O leitor escreve

O pescador
Júlio não gosta de futebol. Seu pai gosta, muito. Seu pai gostaria que ele gostasse de futebol, gostaria muito. No aniversário de dez anos, o pai deu ao filho um par de chuteiras e uma bola tamanho oficial. Ambas da marca Nike, na cor azul metálico. Júlio gosta do pai, gosta muito, de verdade. Assim, gostou muito do presente também, mesmo não gostando. O pai ficou feliz que o filho tenha gostado tanto assim dos presentes. (Mesmo sabendo que o menino não tinha gostado tanto assim).
Júlio mora na rua Buarque de Macedo, no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. A rua começa na Praia do Flamengo e termina na Rua do Catete. Tem sempre muitos carros estacionados dos dois lados, passagem para um carro de cada vez. O prédio em que Júlio mora, não tem play. "Vai filho, chama seus amigos e vai jogar bola embaixo". Júlio achou muito estranho o pai dizer isso, pois se não pode sair na rua sozinho, pois se tem muito mendigo e gente ruim que faz mal para as crianças. Mas, Júlio gosta muito do pai e achou por bem obedecer. Ligou para o amigo da escola, que morava em outro prédio e perguntou se ele queria jogar bola na calçada, que ele tinha ganhado uma bola nova e o pai tinha dito para ir jogar embaixo e ele tinha ganhado também as chuteiras. "Que maneiro!", disse o amigo, que realmente gostava de futebol, mas sabia que Júlio não sabia jogar e que também não podiam descer para a rua para brincar. "Minha mãe disse que a rua não é lugar para brincar", disse o amigo. Então Júlio calçou as chuteiras, pegou a bola e desceu.
O porteiro elogiou as chuteiras e a bola brilhantes, e apertou o botão para destrancar o portão eletrônico. Júlio ficou em na calçada estreita, em frente à grade do prédio. A calçada era esburacada e com sujeira de cachorro. Fez a bola quicar no chão, chutou de leve, passando o por cima. Ficou chutando de um lado para outro da calçada, em frente ao prédio. Quando vinha alguém, segurava a bola com a mão. Um cachorro fez xixi na árvore em frente ao prédio, a bola escapou dos pés de Júlio e passou em cima do xixi. Ele pegou a bola e parou na frente do portão, o porteiro abriu e Júlio lavou a bola na torneira da garagem. Ficou chutando a bola dentro da garagem do prédio, mas o zelador disse que não podia jogar bola ali.
Ele foi para o elevador e voltou para casa. O pai disse, “?! Vai brincar, cara! Aproveita!”. Júlio não queria voltar para a rua sozinho, não queria jogar bola. Mas, pegou a bola de novo e desceu. Saiu pela calçada e foi andando em direção ao Aterro. Atravessou a rua passou pela passarela sob as pistas dos carros. Foi chutando a bola devagar, até uma quadra de basquete. Ficou olhando os caras jogando basquete. Não gostava de basquete, menos ainda do que de futebol, a bola era muito grande e pesada. Foi até aquele lago retangular, sempre seco, tinham falado que era um lago para miniatura de barcos a motor ou a vela. Mas o lago estava sempre seco, por causa dos mosquitos da dengue. Bem que se estivesse com água ele ia gostar de brincar com barquinhos de controle remoto, mas era caro, o pai nunca ia comprar para ele. Ele entrou no lago seco e começou a chutar a bola de um lado para outro. Tinham pintado um gol de cada lado do lago e Júlio marcou muitos gols, dos dois lados.
Enquanto chutava a bola nova, não reparou num grupo de meninos de rua que pularam a cerca do lago e ficaram olhando ele jogar. ", vamu jogá?" Júlio sacudiu os ombros, os meninos entraram no lago seco por causa da dengue e fizeram dois times. Os meninos estavam descalços, mas sabiam jogar futebol. Eles gostavam muito de futebol. Acharam a bola linda. Júlio não conseguia mais tocar na bola, ele não sabia jogar futebol, acabou ficando de fora. Sentou-se na beira do lago, ficou olhando o jogo e vendo os bondinhos de Pão de Açúcar se cruzando entre os dois morros, longe, na Urca. Uma vez ele foi pescar na Urca com o pai, ele gostou de pescar com o pai. Ele gostaria de ganhar uma vara de pescar, daquelas com molinete, e ir pescar com o pai. "Me empresta a chuteira?" Um menino maior do que ele estava na sua frente. Júlio ficou com medo. Tirou a chuteira e emprestou. As meias também. Obviamente, as chuteiras ficaram apertadas no moleque, mas ele as enfiou assim mesmo. Os meninos ficaram jogando futebol, a bola estava suja e arranhada, as chuteiras no do outro também. Mas estavam felizes, uma alegria fácil de um jogo que os tirava momentaneamente das ruas e os colocava dentro de um campo, com regras conhecidas e que aqueles meninos desregrados sabiam obedecer. Respeitavam as faltas, as laterais, os tiros de metas. Xingavam-se, batiam-se, mas jogavam bola e marcavam gols. Júlio queria ir embora, mas não tinha coragem de interromper o jogo para pegar a bola e as chuteiras de volta. Até que a bola veio em sua direção e ele a pegou. "Joga a bola , mano!" "Tenho que ir embora" "E daí, joga a bola !" "Meminha chuteira, tenho que ir embora" "Dá a bola , moleque! Quer morrer?!” De algum lugar, surgiu um revólver na mão de um menino. Júlio se assustou, pulou a cerca, caiu do outro lado e saiu correndo. Foi correndo até em casa. Entrou ofegante. “Que foi menino?! Cadê a bola?!"
"Pai, vamos pescar?”
Foram.

Rio , 15 de agosto de 2006

sexta-feira, julho 21, 2006

Os prêmios, Julio Cortázar

Essa resenha marca minha estréia no jornal literário Rascunho. Visite o jornal para ler o texto e deixe aqui seu comentário.
Abraços,
Daniel

Em busca da maternidade perdida

Memórias Líquidas, de Hilda Lucas. Editora de Cultura, 232 páginas. R$ 34,90
Resenha publicada no Globo, em 8/7/2006

 “... Não existe sequer uma palavra para nomear quem perde um filho. Viúvos são os que perdem os companheiros, órfãos os que perdem os pais... Mas que nome tem quem perde um filho?”

 Hilda Lucas escolheu um tema difícil para publicar o seu primeiro romance. Há quem diga que não existe dor maior do que a perda de um filho. Maior em todos os sentidos, em intensidade e em duração. Uma dor tão terrível que se torna inominável. E algo inominável é muito difícil de ser tratado pela literatura.
O livro conta a história dos membros de uma família e suas diferentes maneiras de lidar com a morte da filha mais velha, quando a menina tinha oito anos. Dez anos depois, mãe, irmã, pai, empregada e amiga da mãe têm suas reações e histórias narradas em capítulos intercalados, dedicados a cada um deles. A voz de claro timbre feminino da narrativa retrata os personagens de forma onisciente. A intenção é mostrar o ponto de vista de cada um sobre a criança morta e sobre os demais, sob a supervisão geral da narradora. Os olhares, no entanto, demoram-se mais sobre a mãe, centro de tensão da rede de relações.
No esquema de Hilda Lucas, filha, ex-marido e empregada procuram levar suas vidas adiante, apesar da estagnação no sofrimento da mãe. Em oposição, uma amiga, que revela-se inimiga, procura manter a mãe em um estado permanente de dor. O suspense da trama é se a mãe conseguirá ou não libertar-se da má influência e superar o trauma, redescobrindo a vida e a filha viva.
A filha mais nova, agora adolescente, é a única a quem a autora concede voz própria, em longos monólogos/diálogos com a irmã morta. Hilda procura mostrar como cada pessoa lida com a perda. No caso da irmã, segundo suas próprias palavras, "comecei a inventar você quando eu vi que tava te esquecendo...". A partir daí, Gabi, a caçula, tem longas conversas com Clara, a irmã mais velha imaginária, que vai crescendo com ela, vivendo juntas a passagem complicada pela adolescência. Além disso, os diálogos com a irmã ausente compensam a distância imposta pela mãe, que não se permite aproximar-se da filha viva. Para Gabi, a gangorra equilibra-se no convívio com o pai, que conseguiu superar a morte da primeira filha. Do mesmo lado do pai, está Amália, a empregada, espécie de escudeira, que vai amarrando as pontas soltas do lar desfeito para que a vida não se desmanche de vez. O conflito é estabelecido pela presença de Beth, que alimenta a tristeza de Ana, a mãe, para nutrir-se de sua dor, íncubo maligno que a narradora revela sem disfarces ao leitor.
O universo de emoções e tensões a que somos expostos no livro de Hilda Lucas, apesar do tema tortuoso, é muito organizado e planejado. A narrativa guarda algumas surpresas que a livram da previsibilidade, no entanto, os personagens e a própria teia de relacionamentos tem algo de esquemático. O conflitoAna x Beth”, o fio de suspense que mantém o leitor  preso à leitura, na verdade, é um conflito interno de Ana de superação da morte da filha e de auto-superação. Nesse aspecto, a personagem Beth poderia ser dispensada se o foco de tensão fosse desviado para o conflito interno de Ana e a resolução de seu relacionamento com a filha viva. O romance talvez ganhasse em profundidade se trabalhasse nesse nível interno ao invés de lidar com essa superação de maneira quase dicotômica, bem x mal, no conflito organizado entre vida e morte, Ana x Beth.
Por outro lado, apesar desta organização que impede o livre fluxo da vida interior dos personagens para além do planejamento narrativo, percebemos na narradora uma extrema afetividade e delicadeza no tratar de seus personagens. O tema da morte de um filho é importante para além dos limites literários e é impossível não se deixar tocar por uma história assim. Quem passa por isso na vida, dificilmente terá o mal encarnado em uma pessoa nociva de carne e osso, que se pode afastar e seguir em diante. A luta verdadeira é pela superação da dor interna, da sensação de fim de tudo, de perda de sentido. Mas, se alguém morre, outros estão vivos ao redor. A verdadeira missão de Ana é redescobrir a filha viva e recuperar os dez anos de convívio esmagados pela dor extrema.
Hilda Lucas, bahiana, radicada em São Paulo, com uma longa passagem pelo Rio, é advogada, tem 52 anos e, escolheu uma das mais terríveis perdas para renascer pela via da literatura, pois, Memórias líquidas, segundo a própria escritora, é uma retomada. Em entrevista no site www.bmsr.com.br, ela diz: “Um ano após enfrentar uma separação, lancei Memórias Líquidas com meu nome de solteira. Foi como resgatar minha certidão de nascimento, meu código genético, minha alma”. Portanto, o livro, além de falar do resgate familiar da lembrança de uma criança morta, serviu de processo de reencontro da autora consigo mesma, com suas origens perdidas. A literatura cumpriu seu papel.